Viagem ao Salar de Uyuni
São Pedro do Atacama, ao norte do Chile, nos recebe para a entrada no deserto. Antigo ponto de parada de rotas vindas da Argentina e Bolívia, um oásis acolhe esta cidade de pouco menos de 10.000 habitantes a uma altitude de 2.500 metros.
Estreitos canais alternam a irrigação das pequenas propriedades de antigos atacamenhos no dia e hora previamente agendados, em esparsos lapsos de tempo, dando vida a canteiros de alfafa que alimentam poucas cabeças de gado e cavalos. Algumas arvoretas perdidas se defendem com espinhos e nos garantem um pouco de sombra para levar as horas quentes da tarde. Era novembro e o calor apenas começava, assim que não vivemos o calor mais intenso.
As construções feitas da terra arenosa e em forma de adobe se mimetizam com as cores do chão. E os muros feitos dessa mesma terra recebem guirlandas com pequenos triângulos, que homenageiam o vulcão Licancabur, majestosamente sempre presente por onde se quiser olhar, no alto dos seus quase 6 mil metros.
A imersão é instantânea e implacável, não havendo tempo para adaptações. O mais seco e alto deserto do mundo esparrama sua aridez por mil quilômetros, com uma paleta de cores dos violetas aos marrons, imensidão de areia e sal em tons terrosos, envolvidos por relevos escarpados, em formas agudas, e um céu quase sempre muito limpo e azul que, quando a noite vem, faz a alegria dos observadores de estrelas. Sob esta vastidão, um gigantesco depósito de minérios valiosos. As correntes marítimas barradas pela cordilheira dos Andes impedem a possibilidade de ocorrência de chuvas e fazem da água o bem mais precioso deste lugar. Há uma crença neste lugar que da água que se usa deve sempre um pouco ser dada a Pachamama, a Mãe Terra, como uma forma de reverência.
Um lugar vasto e tão áspero nos oferece beleza em estado puro. Lagoas cor de esmeralda cheias de sal, tanto que nos fazem boiar, surgem de repente como joias de verdadeira grandeza e nos invadem de alegria por estar vivendo este momento. Rios de capim na cor dourada correm nos vales por onde já foi o caminho da água. Nascentes de água quente, em forma de pequenos espelhos de água. Vales e planícies guardam água, nos bofedais encharcados, que se formam com o degelo da neve dos picos circundantes, recebem as lhamas enfeitadas com tiras coloridas indicando sua propriedade, e se misturam às alpacas, guanacos, vicunas, além de muitos pássaros, transformando estas áreas em bolsões de vida. No tempo de aclimatação necessário para vivermos nas altitudes extremas de nosso destino, o Salar de Uyuni nos leva a contemplar a cada dia uma paisagem muda e plena que nos faz aos poucos irmos nos silenciando até que, calados, nos resguardarmos a tanta beleza. Aqui fica claro que o belo não é subjetivo, ele simplesmente é. As mais belas paisagens têm um efeito de nos revelar a nós mesmos. “A mística da Natureza que nos invade com experiências positivas de harmonia”, nas palavras de Patrick Corneau, no prefácio de As ilhas de Jean Granier.
A travessia do Altiplano Boliviano nos coloca no deserto profundo, com ansiedade e temor, potencializado pelo desconforto físico causado pela falta de oxigênio. No seu tempo, este lugar insólito e instigante nos premia com seus tesouros engastados na paisagem lunar. Nos oferece mais lagoas de todas as cores que vão nos brindando ao longo do nosso percurso, como a Lagoa Verde, tão bela e tão inóspita, tingida por arsênico e cobre, e logo adiante a lagoa Colorada pigmentada por algas que produzem caroteno, exalando sua cor coral, com seus 60 quilômetros quadrados circundados pelo bordado do branco do bórax. Os flamingos, em tom sobre tom, desenvolvem uma cenografia inebriante, bailando por horas enquanto usufruem do alimento destas águas tóxicas, exceto para eles e algumas outras poucas aves.
Pelo caminho, habitantes de algumas pequenas aldeias, resistentes e complacentes, plantam quinoa com a água do degelo do cume dos vulcões, que estão sempre ameaçando reviver. Com suas roupas tecidas de fios coloridos e cabeças sempre protegidas por chapéus pretos, protegem-se do sol e das baixas temperaturas da noite.
A chegada ao Salar de Uyuni é uma vivência desconcertante. Um infinito branco, do tom do vazio, um vazio que atormenta e fascina, vai tomando conta de todos os pontos da nossa visão, até ser tudo um nada a nos colocar no tamanho certo da nossa pequenez, dentro desta magnitude exuberante. Uma estranha sensação de preenchimento profundo e ao mesmo tempo de vacuidade. O céu que aí costuma ser azul, estava neste dia da cor do sal, deixando a paisagem monocromática, sem nenhuma referência, e anunciando uma muito improvável chuva nesta época do ano. O desejo enorme de sair correndo para dentro desta cena do infinito acompanha um desespero de não se reconhecer neste lugar, e do desejo realizado de se atirar neste chão de sal, sobre uma espessura de 70 m de lítio, e recarregar a vida com toda esta energia. Uma trama hexagonal, como partículas de sal gigantes em relevo, desenha o chão criando uma geometria de luz e sombra que se dissipa na distância. Este mar de sal circunda algumas pequenas ilhas inexplicáveis, que se misturam às miragens, com uma enorme variedade de minerais, como potássio, boro e magnésio, e uma floresta de belos cactos de até 5 metros de altura ostentando sua verticalidade e flores brancas e exibidas. No caminho até Tagua, no acampamento para passar a noite, chega a chuva anunciada e o sol aparece em seguida para se pôr, encenando todas as suas nuances sobre um gigantesco e fino espelho d’água, criado pela chuva sobre a placa de sal. Toda a beleza que já não era pouca se espelha à nossa frente.
No dia seguinte pela manhã somos presenteados pela visão do vulcão Tunupa coberto de neve. A água já desapareceu sobre o salar, deixando o deserto mais branco, e os cristais de sal brilharem como milhares de estrelas, atapetando nossa passagem. Impossível não chorar de alegria com a emoção da vivência que tanta beleza nos revela.
texto Isabel Duprat
fotografia Isabel Duprat e Manoel Leão
Janeiro, 2014